Apesar da doação de órgãos ser vista como um gesto altruísta e que salva vidas, o procedimento em Campinas ainda enfrenta um grande obstáculo: a recusa da família em fazer a doação. Na cidade, cerca de 40% de órgãos notificados e que poderiam ser usados em transplantes não são doados por causa da negativa familiar.
Os dados de doações registrados pela cidade foram divulgados pela OPO (Organização de Procura de Órgãos) da Unicamp, à pedido do ACidade ON
. Segundo o órgão, de janeiro a agosto deste ano já foram notificados 56 casos de mortes encefálicas (quando o cérebro para de funcionar, mas os órgãos não). No entanto, apenas 19 foram doadores.
Segundo o balanço, no ano inteiro de 2019, houve 75 notificações na cidade, com 31 doadores. Em 2018 foram 72, com apenas 29 doadores.
O número baixo de doações em Campinas segue a mesma tendência dos números do Estado e do País. A negativa, no entanto, vem em meio à uma fila de 17.522 pessoas no Estado que estão no aguardo de uma doação.
Segundo o coordenador da OPO Unicamp, Luiz Antonio da Costa Sardinha, entre os motivos para a não doação de órgãos de uma pessoa com morte encefálica, está também a contraindicação técnica, com notificações de idosos ou pessoas que apresentam infecções. No entanto, a não aprovação dos responsáveis é ainda um dos motivos mais graves e que mais preocupa.
"O que se observa é que infelizmente estamos com 40% de recusa em Campinas e média parecida em toda região da OPU Unicamp. Temos uma porcentagem perto de 12% por contraindicação técnica, e outros números de pacientes mais idosos, com tumores, infecções, mas infelizmente a recusa é a maior responsável" declarou.
Apesar de estar na média nacional e em quantidade "suficiente" de notificação pelo cálculo por milhão de habitante, o coordenador indica que o número efetivo de doação ainda é baixo na cidade.
"Tivemos no ano passado 75 notificações por milhão de habitantes, sendo que o número de notificações esperado no mínimo é de 50 notificações por milhão, ficamos então em quantidade igual ou acima da média nacional. No entanto, quando trabalhamos números de doadores por milhão, isso é baixo, nós estamos muito baixos de outras cidades como Florianópolis, que tem 45 doadores por milhão", declarou, afirmando que o objetivo é chegar a pelo menos 50 doadores por milhão no ano.
Mesmo baixo, segundo o coordenador, o número vem demonstrando aumento nos últimos anos- exceto neste, que por conta da pandemia do novo coronavírus houve uma diminuição nas mortes encefálicas registradas por causa da quarentena, e a diminuição de doadores viáveis, pelo registro maior entre os casos de pessoas idosas que vieram a óbito.
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"É um número que melhorou muito ainda. Há cinco, seis anos atrás tínhamos 60% de recusa, para nós 40% é até uma vitória" afirmou.
Pela legislação brasileira, não há como garantir efetivamente a vontade do doador, no entanto, observa-se que, na grande maioria dos casos, quando a família tem conhecimento do desejo de doar do parente falecido, esse desejo é respeitado. Por isso, a informação e o diálogo são absolutamente fundamentais, essenciais e necessários. Essa é a modalidade de consentimento que mais se adapta à realidade brasileira. A previsão legal concede maior segurança aos envolvidos, tanto para o doador quanto para o receptor e para os serviços de transplantes.
Os órgãos doados vão para pacientes que necessitam de um transplante e estão aguardando em lista única, definida pela Central de Transplantes da Secretaria de Saúde de cada estado e controlada pelo Sistema Nacional de Transplantes (SNT).
A doação pode ser de órgãos (rim, fígado, coração, pâncreas e pulmão) ou de tecidos (córnea, pele, ossos, válvulas cardíacas, cartilagem, medula óssea e sangue de cordão umbilical). A doação de órgãos como rim, parte do fígado ou da medula óssea pode ser feita em vida.
O Brasil ocupa a segunda posição entre os países que mais realizam transplantes - atrás apenas dos Estados Unidos - ainda assim, temos mais de 34 mil brasileiros que aguardam por um transplante.
AUMENTO DE DOADORES NA PANDEMIA
No Departamento Regional de Saúde de Campinas- que inclui ao todo 127 cidades abrangidas pela OPO Unicamp, a observação foi positiva em relação a aceitação das famílias.
Apesar da diminuição em relação ao número de transplantes e de órgãos notificados, houve também uma diminuição da recusa familiar nos meses seguintes da pandemia (a partir de abril).
Segundo a coordenadora dos transplantes hepáticos do HC (Hospital de Clínicas) da Unicamp, Ilka Boin, a queda da negação das famílias saiu de 45% para 38% nos últimos meses.
"Eu acredito que essa nova doença mexeu com o interior de cada um, e que isso foi benéfico para a doação, com maior conscientização das famílias, esperamos que continue assim", afirmou.
ACEITAR A MORTE
Para o coordenador da OPO, o grande número de recusa familiar é causado pelo desconhecimento da morte encefálica, que faz muitas famílias passarem por um processo de não aceitação da morte.
"A tradição judaico-cristã considera que o coração é o centro da vida, estamos inseridos nessa cultura então é difícil, porque as famílias não entendem que a pessoa está morta se o coração ainda está batendo. É um choque, a família muitas vezes não acredita que a pessoa está morta, então aceitar isso junto com lidar com a perda e com uma conversa sobre doação não é fácil", declarou.
A DOR
A cabeleireira Luana Granh é exemplo de como uma mãe que em meio ao sofrimento da morte da filha de apenas 1 ano e 10 meses, aceitou doar os órgãos da bebê, que morreu após se asfixiar com a ingestão de uma fruta, no ano passado. A menina ficou internada 11 dias, e após uma série de exames teve a morte encefálica confirmada pela equipe médica.
Luana conta que o processo foi doloroso, mas que desde o começo, tinha certeza sobre a doação, vendo o ato como forma de deixar a filha ainda viva, mesmo que em outro corpo.
"No começo ninguém acredita na morte. Para mim, os 10 dias da UTI foi bom para isso. Para digerir e aceitar. Desde o começo que vimos que era grave, eu e meu marido já conversávamos sobre a doação, mas tínhamos esperança até o último minuto dela reagir", declarou. Segundo ela, a doação ajudou até mesmo a deixar o processo de aceitação da perda mais leve.
"Para gente não foi traumático a doação, porque era uma coisa que eu queria muito, acho um ato muito bonito. A conversa não foi pesada. O sofrido foi deixar o corpo a disposição, esperar para enterrar. Mas vale saber que parte dela fica viva em outra criança", disse, citando que o rim da menina foi doado a uma criança do estado do Rio Grande do Sul.
IMPORTÂNCIA DA CONVERSA
Da mesma forma, para Henrique Brazão que doou os órgãos da mãe, de 52 anos, que morreu após um AVC (Acidente Vascular Cerebral), não houve hesitação para a doação, isso ainda mais porque a mãe já havia sinalizado o desejo de ser doadora.
"Era uma questão muito clara em casa, mas gente nunca tinha conversado sobre a doação, eu já tinha ficado doente há anos e já tinha colocado na minha cabeça sobre doação de órgãos. Minha mãe nunca tinha comentado sobre isso, mas cerca de um mês antes da morte ela viu uma reportagem sobre doação e me falou que se pudesse queria doar" disse.
Ao todo, Lenice doou quatro órgãos, que puderam ser transplantados em quatro pessoas diferentes.
"Era um consenso que se acontecesse iremos doar. Acredito que a recusa das famílias esbarra em uma questão de religiosidade. Eu acho que a fé é muito importante, mas às vezes esbarra na ciência e por egoísmo, a recusa para pessoa ficar ali mais tempo, sendo que o corpo da pessoa pode servir para salvar outra", acrescentou.
Para o coordenador da OPO Unicamp, informações sobre a doação são importantes para possibilitarem a conversa familiar sobre ser doador.
"Ninguém fala sobre a morte do nada, ainda mais sobre doação. Vemos que sempre que acontece da família ser avisada, é quando a pessoa viu uma reportagem, leu algo sobre aquilo, e isso é muito importante para nós, porque além de falar sobre o desejo, deixa o processo muito mais leve", declarou.
O que é transplante?
O transplante é um procedimento cirúrgico que consiste na reposição de um órgão ou tecido de uma pessoa doente (receptor), por outro órgão ou tecido normal de um doador vivo ou morto.
A legislação em vigor determina que a família seja a responsável pela decisão final, não tendo mais valor a informação de doador ou não doador de órgãos, registrada no documento de identidade.
TRANSPLANTES
O HC é um dos cinco centros do Interior que realizam procedimentos de transplante. O hospital atende pessoas da região de Campinas e até mesmo de outros Estados.
No hospital, o número de transplantes despencou esse ano, por causa da pandemia e da diminuição em cirurgias em diversos setores. Segundo Ilka, de janeiro até outubro foram realizados 119 transplantes, contra 312 realizados no mesmo período do ano passado.
Entre os números deste ano, o procedimento mais realizado no hospital foi o transplante de rim, com 80 cirurgias. Outros 35 transplantes foram de fígado, e quatro de coração.
Na região que tem acesso ao serviço de transplante do HC, são cerca de 550 pessoas na fila de espera por um órgão.
HOSPITAIS DOADORES
Entre os hospitais de Campinas, são listados dez hospitais que notificaram a OPO sobre possíveis doadores.
Entre eles, estão hospitais públicos e privados. São listados o HC (Hospital de Clínicas) da Unicamp, Mário Gatti, Ouro Verde, Hospital Metropolitano, Hospital da PUC, Samaritano, Vera Cruz, Renascença, Madre Theodora e o Centro Médico.
O principal doador nos últimos três anos foi o hospital sede da OPO. Das 56 notificações da cidade neste ano, o HC foi responsável por 26 - destas, saíram 7 doadores. Já o Hospital da PUC até agora é o segundo em registros, com 9 notificações e 4 doadores, em seguida do Mário Gatti, com 7 notificações de 3 doadores.
Segundo Sardinha, nos últimos anos há a maior conscientização também dos profissionais da saúde e dos responsáveis pelos hospitais, para notificaremos registros de possíveis doadores e terem uma abordagem adequada com os familiares.
"Existe ainda um desconhecimento da morte por parte das famílias, e com isso um medo de falar do diagnóstico, mas os hospitais notificam, e a cultura dentro deles melhorou muito. Quanto mais conversamos com médicos, assistentes sociais, mais doadores vamos ter doações", declarou.
"Na Unicamp, o número é melhor porque temos cursos de capacitação, fazemos até quatro cursos no ano. Mas fora isso, temos que ter uma cultura na cidade de que a doação é uma coisa boa, é treinamento e essa mudança que podem fazer esses indicativos melhorarem" ressaltou.