De obras de arte a milagreiros: os segredos do Cemitério da Saudade
Reprodução: ACidade ON
De obras de arte a milagreiros: os segredos do Cemitério da Saudade


Reaberto ontem (31) e voltando a receber público com maior volume neste feriado de Finados (2), depois de ficar mais de sete meses com visitações suspensas pela pandemia da covid-19, o Cemitério da Saudade, em Campinas, mantém guardado parte da história da cidade não apenas em seus restos mortais, mas também esculpida em mármore, granito e bronze.

Tombado pelo Condepacc (Conselho de Defesa do Patrimônio Artístico e Cultural de Campinas) em 2004, o cemitério campineiro é, segundo especialistas, um dos mais importantes no país por causa relação ao patrimônio histórico e artístico e cultural que contém - e que segue desconhecida por boa parte dos campineiros.

Fundado em 1881, o espaço pode ser considerado um verdadeiro acervo, com obras de imigrantes italianos, que atendendo a demanda da alta burguesia da cidade produziram, pela arte tumular, diversas esculturas, altares seguindo o padrão de arte renascentista e moderna.

Entre os autores com obras assinadas, estão italianos como Lelio Coluccini (escultor neoclássico e modernista que além de Campinas tem obras em São Paulo, na praça da República e no Parque do Ibirapuera), além de Giuseppe Tomagnini, Marcelino Velez, J.Rosada e Wilmo Rosada, Aldo Puccetti, Nicola del Nero e Albertini, entre outros nomes importantes.

A maior parte das obras foi inserida desde a do cemitério até a década de 50 e 60, quando a arte tumular e neogótica começou a perder força.

VALORIZAÇÃO

Para o urbanista Antonio Carlos Rodrigues Lorette,o cemitério de Campinas é o terceiro maior do Brasil em acervo de arte, perdendo apenas para o cemitério São João Batista, no Rio de Janeiro, e o cemitério da Consolação, em São Paulo. O historiador fez nos anos 2000 um inventário onde classificou mais de 3 mil túmulos com interesse histórico e artístico para preservação no local.

"É um dos maiores do Brasil pela quantidade de obras e de representação, em acervo e importância. Todo cemitério é um museu a céu aberto, porque guarda a memória da cidade, é onde estão os heróis, a sociedade que construiu os ciclos históricos, e no caso o de Campinas é também um museu de arte, de cultura, com um depositário de relíquias", declarou.

Durante todo feriado de Finados em 2019 o cemitério recebeu aproximadamente 50 mil pessoas. Com a reabertura em meio a pandemia, para os três dias de liberação é estimado pela Setec (Serviços Técnicos Gerais) um público entre 15 e 20 mil pessoas por dia.  



A HISTÓRIA

Com 112 quadras dispostas em uma área de 181,5 mil metros quadrados, o Cemitério da Saudade é formado por cinco cemitérios que existiam na Vila Industrial e tiveram os túmulos transferidos como uma forma de levar a necrópole para mais longe da cidade.  

Apesar da tentativa, hoje o cemitério está localizado entre duas principais avenidas da cidade, e a dois quilômetros da região Central.

O complexo é constituído pelos cemitérios Cura Dars (para vítimas de febre amarela), Cemitério São Miguel e Almas (para os negros católicos), Cemitério Terceira Ordem do Carmo, Cemitério Santíssimo Sacramento (destinados a brancos católicos) e Cemitério São José.

A diferenciação desses cemitérios - que são "separados" por quadras - é percebida visualmente pelo material e a estética empregada nos diferentes tipos de construções, o que demonstra também a divisão social da época.

PERSONALIDADES

Além do patrimônio artístico, as alamedas do cemitério abrigam também importantes personalidades da cidade e do país. Nelas estão enterrados os heróis da Revolução de 32 - que ganharam um monumento próprio em sua homenagem -, além de nomes como Francisco Glicério, Ramos de Azevedo, Bento Quirino, Mário Gatti, Hercules Florence e tantos outros membros da antiga nobreza da época do império.

Para Loretti, muitos dos túmulos da alta burguesia mostram a riqueza da cidade na época. "Campinas foi a cidade mais importante do Estado antes da epidemia da febre amarela, grandes nomes até chegaram depois a se mudar para São Paulo, mas deixaram os túmulos", afirmou. Para o especialista, o cemitério deveria ser um dos lugares mais valorizados pela Administração.

"É um depósito de passado, feito pelos vivos e para os vivos. É um espaço de referência, de história, para conhecer a história da cidade, o lugar mais importante é o cemitério", afirmou.  

Túmulo de Maria Jandira (Foto: Arquivo)

MORTOS MILAGREIROS

Apesar das diversas personalidades sepultadas, os túmulos mais visitados e que desbancam a atenção das caríssimas artes são na verdade os de pessoas que ficaram conhecidas após a morte.

Das sepulturas famosas do cemitério da Saudade, estão três túmulos classificados como de "milagreiros". Entre eles o escravo Toninho, escravo do Barão Geraldo de Rezende. Morto em 1904 e sepultado ao lado dos jazigos de mármore carrara do ex-senhor, Toninho coleciona centenas de placas de agradecimentos por milagres alcançados.

Além dele, há o túmulo de Maria Jandira, uma prostituta que ateou fogo ao corpo quando teve seu casamento desfeito e os "três anjinhos" - três crianças que morreram em decorrência de um incêndio na casa onde moravam -, que também recebem fiéis que agradecem as graças obtidas.  

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Túmulo do Escravo Toninho também recebe homenagens (Foto: Carlos Bassan/Divulgação)

FALTA DE CUIDADO

Apesar de ser classificado como patrimônio, o cemitério municipal é alvo de vândalos e coleciona diversos registros de furtos de peças de arte, que levam embora não só escultura, mas parte da história da cidade.

Para Loretti, os furtos demonstram ainda mais a falta de conhecimento sobre o valor artístico dos monumentos.

"Tem obras que se formos avaliar pelo valor histórico, deve valer mais de 500 mil, e infelizmente muitas acabaram sendo roubadas, r a pessoa vai, vende para derreter em ferro velho, pra conseguir menos de 1 mil, não reconhece o valor, é muito triste", disse.

No ano passado, uma operação da polícia resultou na prisão de alguns dos que praticavam o crime no local .  



OBJETO DE ESTUDO

Pela grandiosidade do acervo, o Cemitério da Saudade já foi objeto de estudo de diversas teses de mestrado de historiadores e arquitetos da cidade.

Recentemente, um documentário de alunas da PUC-Campinas reuniu especialistas que estudaram o local, junto à família dos principais artistas que tiveram as obras assinadas.

Segundo as alunas, o curta-metragem faz uma reflexão a partir do atual abandono do cemitério, relacionando ao fim da arte tumular, ocasionado pela mudança na forma como a morte é vista pela sociedade.

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