A pandemia de Covid-19 deixou mais lento o processo de acolhimento de dependentes químicos realizado pelo Instituto Padre Haroldo , entidade de Campinas que tem o serviço de reabilitação como um de seus principais braços. Juliano Santos , gestor dos Programas de Recuperação e Tratamento, costumava acolher novos integrantes quase todos os dias, dependendo da quantidade de vagas, mas a crise que se estabeleceu há mais de dois meses impôs uma série de limitações ao trabalho.
Agora, antes de levar o dependente direto para uma das comunidades terapêuticas , onde é iniciada a reabilitação, Santos faz a primeira etapa do acolhimento em uma casa adaptada justamente pra atender às novas demandas. Os acolhidos passam duas semanas nesse espaço, em grupos de pouco menos de 15 pessoas, e são submetidos a avaliações médicas para identificar possíveis sintomas de infecção pelo novo coronavírus . Enquanto essa estrutura era desenvolvida, o ingresso nas comunidades foi interrompido por três semanas.
“A gente separou um espaço de quarentena e acolhe grupos em uma casa apropriada para isso, que estava sem utilização, mas bem cuidada. A gente fez ela funcionar novamente, preparamos uma equipe supervisionada pelo nosso médico e nossa enfermeira”, conta o gestor.
“Nessa casa, a gente colocou um programa de acolhimento em que eles vão participando como se tivessem chegado direto na comunidade. Se deu tudo certo com esse grupo, ele vai para a comunidade, e a gente acolhe o novo. Estamos agora no terceiro grupo. Um primeiro deu 14 pessoas, o segundo deu dez, e o terceiro deu 13”, completa.
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Apesar da diminuição forçada nos acolhimentos, a procura por ajuda continua em alta, com o telefone tocando diariamente, mas nem todos os casos são direcionados às comunidades terapêuticas . Alguns deles, por exemplo, são orientados a procurar o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS). Aqueles que vão para as comunidades iniciam um período de convivência com pessoas que já estavam lá antes do início da pandemia.
Reinserção
Uma dessas pessoas é o músico e cozinheiro Trindade , de 41 anos, que está na reta final do tratamento e terá alta em cerca de 15 dias, após cinco meses vivendo em uma comunidade do Padre Haroldo . Privado das atividades externas oferecidas pelo Instituo, em razão da pandemia, Trindade não vê problema em encontrar uma sociedade transformada quando deixar a entidade, até porque ele mesmo passou por uma transformação nesse período.
“Eu vou sair da comunidade e eu vou acreditar que eu vou ver um mundo mais humanizado, porque hoje com tudo que nós vivemos, esse mundo capitalista, onde o indivíduo é mais importante que o coletivo, a inversão de valores é muito grande, principalmente no nosso país, um país com muita dificuldades sociais, isso vem de uma carga também espiritual da nossa nação”, diz o músico.
“Já tive muitos obstáculos na minha vida. A minha doença veio para me conscientizar de muitas coisas que eu não conseguia enxergar, e trabalhar meu espírito, minha consciência, porque eu não conseguia mudar. Parece que esse Covid-19 também criou uma consciência, resgatou uma consciência no ser humano, a consciência de valorizar as pequenas coisas”, completa.
O reencontro com a esposa e o filho de 11 anos, com quem conseguiu construir uma relação mais sólida em conversas por chamadas de vídeo durante os últimos meses, é o maior motivador para ele.
Você viu?
“Minha volta para a sociedade é poder materializar um sonho. Em outras épocas, eu não consegui realizar minha vida para poder buscar a minha felicidade, a minha verdade, e partilhar essa vida com as pessoas que me amam, meu filho, minha esposa. Teve um dia que eu estava na vídeo chamada, conversei com meu filho, e ele falou: 'pai, agora eu sinto que você está falando a verdade'”, lembra.
Reações diferentes
Nem todos os acolhidos, no entanto, lidam com a questão da mesma maneira que Trindade. Segundo Juliano, alguns deles sentiram mais o “terror psicológico” causado pela pademia . Houve casos de pessoas que estavam perto de receber alta e pediram para permanecer nas dependências do Instituto por medo do coronavírus .
“Algumas pessoas ainda estão aqui com a gente, estão tentando se estruturar, têm pouco recurso e não têm quem acessar, onde acessar. A gente tem uma missão também de não colocar essas pessoas na rua ao Deus-dará. Dentro das nossas possibilidades, é lógico, tem que acolher, não tem outro caminho. A essência do trabalho é o acolhimento e respeitar a vida desse pessoal que a gente está acolhendo, independente do que ela faz ou tenha feito”, avalia o gestor Juliano Santos.
Em outros casos, ainda que poucos, o efeito foi inverso. Nas primeiras semanas da pandemia, em março, quando as informações ainda estavam sendo assimiladas, acolhidos que estavam na reta final do tratamento pediram antecipação da alta e foram atendidos.
“No começo, logo no impacto da notícia, tinham alguma pessoas que estavam encaminhando para a reta final e solicitaram alta, mas foram poucas, muito poucas. Outras pessoas tinham o processo de alta, mas já era alta terapêutica. Neste caso, ela já está para sair mesmo, já tem uma data para concluir”, explica Juliano.
“Tivemos poucas altas solicitadas e muitas altas terapêuticas, de pessoas que já estavam para sair mesmo. O cara pensou: ‘em vez de ficar 15 dias aqui dentro, vou tocar do jeito que eu consigo lá fora’. A gente também não tinha dimensão da extensão da pandemia, porque estou falando da primeira, segunda semana. Daí em diante não teve mais nada nesse sentido”, completa.
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Dentro da sociedade
Mesmo ciente das dificuldades, os funcionários das comunidades decidiram manter a transparência na hora de comunicar os acontecimentos aos acolhidos. As atividades fora da comunidade, realizadas com frequência dependendo da fase do tratamento, precisaram ser cortadas, e isso gerou alguns quadros de angustia, mas logo houve uma compreensão em massa sobre seriedade do cenário.
“O mundo aqui dentro não pode ser um mundo alienado a ode fora, tanto que eu não uso esses termos, dentro ou fora da comunidade, porque eu me sinto parte da sociedade”, explica Juliano. “A gente sabia que teria um problema quando a gente chegasse para essas pessoas e dissesse: ‘olha, agora está tudo fechado e a gente não vai conseguir deixar os portões abertos’. A gente sabia também que a informação, por mais que venha de diferentes formas, iria ajudar a conscientizar”, completa.
Para Trindade, a conscientização foi rápida e gerou uma reflexão não apenas sobre a vida na comunidade terapêutica, mas na sociedade, de maneira geral. Ele entende que, no momento, todo o mundo está sentindo, dentro das proporções, algo parecido com o que os dependentes químicos sentem diariamente.
“Eu percebo que, mais ou menos, o que nós passamos aqui, hoje a sociedade está passando. Eu, Trindade, sou portador de uma doença, a dependência química. É uma doença muito grave. Nós que somos dependentes lutamos pela nossa vida, todos os dias e a todo momento. O fato de eu estar recluso nessa ocasião para mim é normal, foi uma opção minha, o que não é comum são as pessoas estarem privadas de sair. É um pouco parecida com a minha doença, até hoje não acharam uma cura. Todos nós estamos sujeito a algo que é mais forte do que nós”, afirma o músico e cozinheiro.