Drag queen mais antiga em atividade na cidade de Campinas, Helloa Meirelles, criada e performada pelo ator Orlando Hélio de Oliveira, pisou em um palco pela última vez no dia 22 de março, durante o espetáculo ‘Drag Queen: O Musical’, no Teatro Padre Anchieta. Na manhã seguinte, dia 23, começou a quarentena imposta para combater a pandemia de Covid-19, e Orlando Hélio, aos 50 anos, foi rapidamente consumido por seu outro trabalho, em um hospital privado onde atua como técnico de enfermagem.
Plantonista de UTI no período noturno, ele viu a unidade ser transformada em UTI respiratória para atender apenas pacientes infectados pelo novo coronavírus. Desde então, a rotina ganhou um novo nível de desgaste físico e emocional, mesmo para um profissional de saúde já acostumado a trabalhar noite adentro e dormir ao amanhecer.
“É uma realidade muito dura, muito triste que a gente lida. É um dia a dia duro, não é fácil fisicamente, é bem pesado. Eu trabalho no plantão noturno, são 12 horas, então é bem pesado, principalmente com essa pandemia, o que está pegando muito para a gente é a parte psicológica, porque são famílias. Toda vítima tem sua esposa, seu marido, filhos, netos e por aí vai”, conta o técnico.
Leia também:
- Parada LGBT de Campinas tenta manter visibilidade da luta mesmo fora das ruas
- Enfermeiras do HC leem cartas de familiares para pacientes com Covid-19
Despedidas a todo momento
Com a pressão de lidar diariamente com um ambiente de luto e angústia, Orlando Hélio e os colegas de trabalho deixam os próprios problemas em segundo plano para tentar dar conforto aos pacientes.
“O doente fica muito isolado, então é onde a gente entra com nossa parte psicológica de conversar com esse doente, paciente, de dar um apoio já que ele está totalmente isolado. Então, a gente costuma receber e-mails, bilhetes da família ou até mesmo mensagens por telefone, e nós somos os mensageiros da família para o doente”, comenta
Cerca de duas semanas atrás, um desses e-mails causou bastante impacto no técnico de enfermagem. Uma mensagem foi lida a um paciente idoso no início do plantão. O texto trazia detalhes da vida da família, mencionava a neta do homem e a vontade que ela tinha de reencontrá-lo para tomar seu sorvete preferido. Ao final do plantão, o paciente morreu.
“Ele recebeu um e-mail no começo do plantão, da família dizendo quer tinham fé que ele iria sair dessa, que a netinha estava esperando para tomar o sorvete preferido dela com o avô, como sempre fazia. Enfim, o e-mail contava particularidades dele com a família, e foi muito triste, porque no final do plantão ele foi a óbito, ele morreu”, relembra Orlando Hélio.
“A gente leu esse e-mail no começo da noite, nós lemos para ele, meu colega de trabalho leu para ele, e é como se fosse uma despedida, porque no final da noite ele veio a falecer. Então é muito difícil essa parte psicológica, é muito pesado para a gente. Está todo mundo muito cansado e exausto, esperando que acabe logo. Por outro lado, a gente tem muito orgulho”, completa.
Trajetória
Orgulho, aliás, é um sentimento constante para Orlando, ainda mais quando ele está performando a drag queen Helloa Meirelles. São 31 anos na ativa, cinco deles morando em Sevilla, na Espanha, e se apresentando por outros países europeus.
Você viu?
No retorno da Europa, a vontade era de abandonar a carreira de drag, por isso a decisão de fazer um curso de técnico de enfermagem, profissão que exerce há 11 anos. O amor pela arte e os convites para participar de eventos, no entanto, foram mais fortes, e as duas ocupações passaram a dividir espaço.
Leia Também
Leia Também
Leia Também
As apresentações diminuíram em comparação à grande demanda existente entre os anos 1990 e 2000. Além disso, agora, é preciso conciliar a agenda com as folgas da enfermagem, ainda mais trabalhando de noite. De qualquer maneira, o nome Helloa Meirelles continua sendo referência, não à toa ela será a apresentadora da 20ª Parada do Orgulho LGBT de Campinas, no próximo domingo, dia 28 de junho.
Diante do cenário atual, a organização decidiu tirar o evento das ruas para evitar aglomerações, até porque, na edição do ano passado, a Parada contou com cerca de 110 mil pessoas. Helloa vai apresentar a live organizada pela Associação da Parada e Apoio LGBT para não deixar a data passar em branco.
Parada sem rua
Desde o início da pandemia, a drag até participou de uma ou outra apresentação virtual, mas para públicos bastante restritos. Na função de porta-voz da Parada, ela voltará a ter contato com um grande público, ainda que seja de longe.
“A gente tenta agir naturalmente, tenta passar uma energia positiva, mas não é a mesma coisa de ter aquela coisa presencial, o calor humano mesmo, os aplausos, os gritinhos que a gente houve. É sempre muito gostosa essa reação do público. Então, essa live do dia 28 vai ser uma volta a fazer alguma cosia a um grande público. A gente espera uma grande visualização, estamos muito empolgados para isso, para fazer essa live atingir o maior número de pessoas possível”, avalia.
A última apresentação de Orlando como Helloa em cima de um palco foi em 22 de março, um dia antes do início da quarentena em Campinas. Na ocasião, o artista estava em cartaz com “Drag Queen: O Musical”, espetáculo criado e dirigido por ele para contar a história da arte drag. O enredo abrange desde a Rebelião de Stonewall, revolta iniciada após episódio de violência policial em um bar de Nova York em 1969, até os dias de hoje.
Além da saudade do contato mais próximo com as pessoas, a impossibilidade de ocupar o espaço público no dia da Parada também mexe com os sentimentos, pois a presença nas ruas é de extrema importância para dar visibilidade à causa LGBTQIA+.
Até por isso, como apresentadora da versão virtual do evento, Helloa terá grande responsabilidade.
“Houve uma tristeza geral, total, porque muita coisa que a gente tinha imaginado não será possível nessa essa comemoração de 20 anos. Na verdade, até será possível, mas com menos grandeza do que é na rua. A partir desse momento, a gente entendeu tudo isso como mais um desafio, mais uma luta, agora contra essa pandemia, mais uma luta que a gente precisa ter para não deixar passar em branco”, lembra Helloa.
Alívio no caos
Esse espírito de luta fez com que Orlando Hélio sequer cogitasse desistir de apresentar a Parada, mesmo com toda a pressão psicológica que tem vivido durante as noites na UTI , tratando pacientes com Covid-19 , e no restante do dia, com medo de ter sido infectado.
“Apesar de toda a vontade que nós temos de ajudar, sair de casa todos os dias e ajudar pacientes que estão lutando pela vida, a gente também tem o nosso psicológico, e o temor de todos os dias que nós podemos sair de lá também infectados, como eu tenho vários conhecidos, amigos e colegas de trabalho que já se infectaram, foram afastados. Inclusive, tenho amigos que estão nesse momento em tratamento”, diz Orlando.
“Mas não cheguei a considerar a não fazer essa live por cansaço mental, porque, justamente esse personagem, a Helloa Meirelles, me ajuda muito a extravasar, porque é um personagem drag. Ou seja, é muita alegria, muito humor, então para mim, pelo contrário, me ajuda muito a relaxar”, completa.
No próximo dia 28, a partir das 16 horas, os EPIs (Equipamentos de Proteção Individual) ficarão de lado para Helloa Meirelles entrar em cena, devidamente paramentada com acessórios mais glamurosos do que aqueles oferecidos na enfermaria. A Parada será transmitida nas redes oficiais do evento ( Facebook , Instagram e Youtube ).