O Caism (Centro de Atenção Integral à Saúde da Mulher) , da Unicamp , registrou neste ano 33 pedidos de aborto em decorrência de violência sexual (estupro). O centro de Campinas é um dos 42 hospitais públicos que realizam o procedimento de aborto legal no Brasil. Na unidade, são realizadas interrupções em gestação de até 20 semanas (cinco meses de gestação).
Neste ano, dos 33 pedidos, 20 procedimentos foram efetivamente realizados, sendo que vários motivos podem causar a não interrupção da gravidez. Entre eles a incompatibilidade da idade gestacional e a própria desistência da vítima da violência em realizar o procedimento.
Das 33 solicitações de aborto deste ano, cinco das vítimas eram adolescentes, sendo que uma tinha apenas 13 anos, e quatro tinham entre 15 e 18 anos. Vale lembrar que o hospital atende toda a região de Campinas.
No ano passado, o número de solicitações para o procedimento foi 84,8% maior do que deste ano, sendo que de janeiro a agosto o hospital recebeu ao todo 61 solicitações, e 40 foram realizadas. O período de quarentena imposto pela pandemia do novo coronavírus pode ter interferido na redução deste ano já houve queda no número dos atendimentos em geral (leia mais abaixo).
LEVANTAMENTO
Um levantamento feito pelo Caism a pedido do ACidade ON mostra que, levando em conta o mesmo período, nos últimos cinco anos (de 2015 a 2020) foram protocolados ao todo 238 pedidos de aborto. Desses, 141 foram realizados.
Segundo a médica Arlete Fernandes, responsável pelo Atendimento Especial do Caism, é notado pela equipe um aumento dos procedimentos de aborto nos últimos anos, mas mesmo assim o percentual de vítimas que chegam ao hospital é menor do total de casos de violência.
"Nós vemos um aumento nos últimos anos, com crescimento ano a ano. No ano passado mesmo registramos o dobro do que tínhamos há anos atrás. Isso tem a ver com o maior conhecimento das mulheres sobre os direitos, mas ao mesmo tempo sabemos que é um número menor do real de casos que acontecem. Muitas ainda têm medo do atendimento e de serem julgadas" afirmou.
Ainda segundo a médica, o número de solicitações de aborto em menores de idade é menos visto por causa da tutela familiar. Algumas famílias tentam defender a criança e acabam deixando a vítima mais exposta à violência.
"Vemos casos que a família acolhe para levar logo no início, sendo elas a maioria nos atendimentos de emergência. Mas ao mesmo tempo, o número baixo que vemos de procedimentos em menores pode ser causado também porque as famílias têm uma cultura de resolver as coisas entre si, resolve continuar a gestação, tenta resolver sozinho o caso até mesmo para não envolver pessoas de fora, e muitas vezes para acobertar os agressores", declarou.
Você viu?
Em agosto o caso de uma menina de 10 anos estuprada pelo tio ganhou as manchetes nacionais. Ela foi vilentada em São Mateus, no Espírito Santo, e passou por um procedimento que interrompeu a gravidez em um hospital de referência em Pernambuco.
O procedimento ganhou repercussão nacional após o caso ser propagado em redes sociais. Manifestantes ligados a movimentos religiosos foram até a porta do hospital protestar contra a ação. O ato, organizado por um grupo contrário ao aborto, teve início após uma publicação da extremista de direita Sara Giromini nas redes sociais, divulgando o nome da criança e o hospital em que ela estava internada. A divulgação dessas informações contraria o Estatuto da Criança e do Adolescente.
NÚMEROS DA VIOLÊNCIA
Os números de procedimentos em vítimas de estupros assustam ainda mais levando em conta os casos atendidos na emergência do Caism. Segundo o hospital, de 2011 a 2019 (ainda não há números fechados deste ano) 1.451 mulheres procuraram e foram atendidas pelo serviço. O atendimento na emergência nesses casos leva em conta os atos de violência acontecidos até cinco dias antes. Nesses casos o hospital usa métodos contraceptivos.
Na emergência, quase metade das vítimas atendidas são adolescentes (com idade até 18 anos). De acordo com o balanço, 20% das pacientes tinham de 10 a 14 anos. Outras 22% tinham de 15 a 18. Na faixa etária dos 19 aos 24 anos, o percentual é de 19%.
"Quase metade vemos que são adolescentes, porque são as mais vulneráveis, as que menos têm condição de se defender", indicou a médica.
Nos casos atendidos, segundo a médica, a maior parte tem o autor do crime conhecido, o que é ainda mais preocupante.
"Cerca de 30% nos casos de vítimas mais jovens são agressores desconhecidos, e aos outros 70% são autores que são conhecidos pela vítima. Seja intrafamiliar, um membro da família, seja um vizinho, colega, pessoas do entorno".
O PROCEDIMENTO E INTERFERÊNCIA DO ESTADO
Apesar de vítimas, a maior parte das mulheres que sofre violência sexual não sabe sobre os direitos garantidos por lei no Brasil, e como ter acesso a eles. O procedimento de aborto legal é menos burocrático do que se imagina, ou pelo menos era.
"Não precisa de decisão judicial. O que a vítima precisa é contar a história dela, há uma avaliação e se a idade gestacional dela for condizente com o período da violência ", declarou Arlete, citando que esse procedimento segue a norma técnica definida pelo SUS.
No entanto, uma nova portaria que modifica os procedimentos para aborto pode dificultar ainda mais o acesso ao direito.
A portaria Nº 2.282, publicada em 28 de agosto deste ano no Diário Oficial da União, modificou o leque de procedimentos e documentos necessários para que as vítimas tenham acesso à interrupção legal da gravidez. O documento cita que o termo para a solicitação deve passar a conter o relato da violência (com detalhes sobre dia, hora e local do fato), além de descrição do agressor e identificação de testemunhas se houver.
"Isso é muito ruim. As entidades médicas e judiciais estão se manifestando e pedindo a revogação, porque dessa forma os serviços descumprem sigilo médico, e podem causar mais receio ainda as vítimas, afastando ainda dos serviços médicos. A norma não pensa na vítima, no mal que ela sente e na situação que passa. Se a vítima não quer denunciar, o médico não pode fazer isso", afirmou a responsável pelo Atendimento Especial do Caism, declarando que a decisão gerou insegurança para os profissionais e para as vítimas.
"Isso gera insegurança para os profissionais e ainda mais para as mulheres, que deveriam ser poupadas disso. A maior parte das vítimas tem muito medo, vergonha, se sentem ameaçadas pelo agressor, e se souber que o hospital vai protocolar isso vão se afastar. Não podemos interpor obstáculos, o médico e o serviço não pode ser obstáculo, temos que atuar na garantia de direitos e na qualidade do atendimento", ressaltou.
A IMPORTÂNCIA DA INFORMAÇÃO
Segundo Arlete, que atua nas Áreas de Anticoncepção e Violência contra a mulher, as vítimas muitas vezes, por medo do julgamento, tentam resolver a situação por conta própria por medo de procurar a área de saúde ou de segurança e ser maltratada.
"Existe uma cultura de que as mulheres têm que ter vergonha quando são estupradas, e com isso elas não se sentem vítimas, incorporam esses julgamentos, se sentem culpadas e com vergonha de terem vivido a violência. Essas são situações que as vítimas tentam resolver por conta própria, o resultado é uma cicatriz que fica, se não for física é emocional, psíquica", declarou.
Segundo a médica, a maioria das vítimas atendidas nos procedimentos de aborto são aquelas que não procuraram o serviço logo nos dias seguintes da violência por receio, mas que não sabem que quanto mais adiam mais o problema piora.
"São mulheres que sofreram, não quiseram contar, e ai quando percebem que estão grávidas revivem o trauma. O problema cresce, e aí tem que falar com muito mais sofrimento, e sobretudo realizar uma decisão que é difícil para qualquer mulher. Vemos mulheres sofridas, com muito medo. A opção do aborto é uma situação em que a mulher não tem outra alternativa, e tem um grau de sofrimento muito grande. É o sofrimento da violência junto com o trauma de um aborto", afirmou.
Na emergência, além de profilaxias para evitar a gestação, o hospital também disponibiliza medicamentos para evitar doenças sexualmente transmissíveis, e acompanhamento ambulatorial de seis meses para recuperação de traumas.
"Por isso é importante é que as mulheres saibam que tem direito de procurar o setor de saúde, que seja uma UBS, UPA, hospital, porque ela vai ser encaminhada e orientada sobre o que fazer. É preciso desse apoio para a vítima se reerguer, refazer a vida", afirmou.