Uma dona de casa de 42 anos, moradora de Araras, conseguiu um habeas corpus que a permite cultivar maconha para tratar sintomas de doença de Crohn, fibromialgia e artrose no quadril. A autorização foi concedida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) após acompanhamento do Centro de Atendimento Multidisciplinar (CAM) da Defensoria de Campinas e ação movida pelo Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria (NCDH) do Estado.
A decisão representa dois tipos de alívios para Marina (nome fictício). Primeiro, o alívio físico, uma vez que o uso medicinal da maconha traz resultados que ela nunca obteve com outro tipo de medicamento. O outro alívio está relacionado à saúde mental, pois, além de a redução das dores colaborar para ela desenvolver um estado psicológico mais estável, a conquista na Justiça ajudou a aplacar conflitos familiares gerados pelo estigma da planta.
A dona de casa mora com o filho de 21 anos, que conseguiu recentemente um emprego como operador de máquinas. Marina trabalhava como manicure, mas as complicações das doenças não permitiram que ela continuasse exercendo a profissão.
O quadro mais intenso é o da Doença de Crohn , problema crônico que inflama o intestino e provoca cicatrizes. Dores abdominais, diarreia e formação de fístulas, com pus na região anal, são alguns dos desconfortos constantes que atingem Marina em razão da doença. Somam-se a isso a dor e a fraqueza muscular generalizada da fibromialgia e as dores intensas no quadril causadas pela artrose.
Diante de uma situação insustentável, com sofrimento físico e psicológico, além de efeitos colaterais de uma série de remédios, ela ficou sabendo, em 2015, que a maconha poderia ajudá-la.
“Eu recebi uma reportagem da Folha de São Paulo, no início de 2015. Uma amiga trouxe para mim, e lá falava que a cannabis seria boa para doenças, inclusive a minha. Na época, eu estava muito debilitada. Já tinha tentado de tudo, todos os medicamentos, e nada funcionava. De 2015 até 2016 eu passei por três cirurgias e fiquei praticamente acamada. No início, eu tinha cólicas que cheguei até a desmaiar. Uma dor terrível”, conta Marina.
A dona de casa passou a pesquisar sobre o assunto e se aproximou de movimentos sociais e associações. Ao fazer contato pelas redes sociais com a Mãesconha Associação Cannábica do Brasil, Marina conseguiu uma consulta em Campinas com o médico Paulo Fleury, que receitou o uso de medicamentos à base de CBD e THC, substâncias extraídas da maconha.
A partir daí, a esperança que surgiu diante da possibilidade logo foi abalada pelos altos preços e limitações dos medicamentos disponíveis no mercado, como conta Renato, filho de Marina.
“Fleury deu a receita e falou: seu caso é grave e você precisa de uma dose muito alta. A gente até procurou a Abrace (Associação Brasileira de Apoio Cannabis Esperança), mas os óleos deles eram muito fracos para o caso da minha mãe. Eram muito diluídos na verdade. Geralmente é para criança, idoso... No caso dela, seria mais interessante ela fazer o uso do artesanal mesmo, ele mesmo disse”, diz o filho.
“O importado, que é o único que pode receitar, é só CBD. No caso da minha mãe não seria 100% eficiente porque na receita dela pede THC também. A dela ficaria em torno de R$ 2 mil, R$ 3 mil por mês”, completa.
Autocultivo como solução
Ao se depararem com essas dificuldades, Marina e Renato entenderam que a melhor saída seria plantar a maconha para extrair as substâncias, mas não sabiam exatamente o que fazer.
“Com essa receita a gente vai poder plantar? Perguntamos para o Fleury. Ele disse: Com essa receita, você é minha paciente e você não está autorizada a plantar, mas é um resguardo que você tem caso aconteça alguma coisa. Você precisa procurar a justiça, entrar com o HC, só que esse é o primeiro passo”, lembra Renato.
Após receberem orientações da Associação Mãesconha, mãe e filho, ainda receosos e com medo da ideia de cultivar maconha dentro da própria casa, contataram o agente psicólogo Marcos Gonçalves, do Centro de Atendimento Multidisciplinar (CAM) da Defensoria de Campinas .
Marcos ficou em contato com os dois por bastante tempo, tirando dúvidas e encorajando-os a levar os documentos à Defensoria para abrir um processo. Após aproximadamente um ano e meio, Marina e Renato resolveram se encontrar com o psicólogo, mas foram necessários mais cerca de seis meses até eles decidirem optar pelo pedido.
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O receio estava relacionado a um conflito familiar. Parentes não aceitavam que Marina plantasse maconha na casa onde ela mora com o filho, o que gerou uma série de repreensões, muitas vezes com agressividade.
“Foi um processo bem longo de construção. Próximo de dois anos só para construir a confiança de que ela podia entregar os documentos para nós. A gente faria o trabalho e pediria o habeas corpus”, explica Marcos. “Sem o atendimento psicológico calmo, tranquilo, que respeitasse o tempo da subjetividade dela, da construção deste movimento de autocuidado, ela não teria conseguido uma acolhida boa para construção de um processo dessa natureza”, completa.
Judicialização
Apesar do acompanhamento do CAM, mãe e filho tentaram levar a ideia adiante com um advogado indicado por uma associação, mas não deu certo. Então, resolveram contatar Marcos para iniciar a ação por meio da Defensoria, e o caso foi encaminhado para o Núcleo de Cidadania e Diretos Humanos da Defensoria (NCDH) de São Paulo.
Toda a situação vivenciada por Marina foi descrita em relatório técnico elaborado por Marcos em parceria com Mathias Glens, psicólogo do NCDH. A ação ficou a cargo do defensor Davi Quintanilha Failde de Azevedo e das defensoras Fernanda Penteado Balera e Leticia Marquez de Avelar .
A Defensoria pediu salvo conduto para que Marina pudesse cultivar a maconha e para que autoridades fossem impedidas tanto de prendê-la em flagrante como de destruir as plantas cultivadas. O pedido, no entanto, foi indeferido em primeira instância. Por isso, a Defensoria levou o caso ao TJ-SP, apontando que havia previsão legal, na Lei 11.343/06, de que a União possa autorizar, para fins medicinais, o plantio, cultura e colheita da cannabis.
“Marina está na iminência de sofrer uma coação, vez que o plantio e uso de cannabis não está completamente regulamentado, conforme prevê a legislação pátria. Apesar de o cultivo e produção caseira de canabinóides configurar medida essencial para a garantia dos direitos fundamentais da paciente, e que, além disso, a correta interpretação constitucional abre possibilidade para o regular exercício deste direito, a União ainda não cumpriu seu dever legal de regulamentação deste tipo de prática", diz parte do texto.
Dedicação
Enquanto o processo corria, Renato resolveu aprofundar o conhecimento sobre os usos medicinais da maconha para conseguir a produção mais eficaz possível para a mãe. Por isso, o operador de máquinas se inscreveu no Curso Sobre Cannabis Medicinal oferecido pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) em parceria com o Movimento de Regulamentação da Cannabis Medicinal (Movrecam).
As aulas que Renato assistiu, no formato on-line, foram as últimas ministradas pelo Padre Ticão, um dos líderes do Movrecam e nome conhecido por uma série de ações sociais na Zona Leste de São Paulo. Ticão morreu no dia 2 de janeiro deste ano.
“Semana passada meu TCC foi recebido, acabou em novembro. Vai abrir a nova turma acho que em março, se eu não me engano. O Padre Ticão era uma pessoa que não tenho nem palavras para dizer”, comenta Renato.
Orgulhoso pelo aprendizado e no aguardo pela aprovação do TCC, o jovem de 21 anos está animado com os resultados que já conseguiu com a cultivação caseira, que tem um custo de cerca de R$ 30, muito distante dos valores astronômicos dos medicamentos do mercado farmacêutico. Segundo ele, a mãe conseguiu se livrar de outros remédios, que causavam efeitos colaterais fortes, e hoje tem uma qualidade de vida muito superior.
“Hoje em dia ela é outra pessoa. Ela chegou a tomar 35 cápsulas de remédio por dia. Ela tomava codeína para dor, de seis em seis hora. Quando ela tomava, prendia o intestino, aí ela tinha que tomar um para soltar o intestino. Com tudo isso, ela tinha muita dor, então tinha que tomar um corticóide para passar a dor. Tinha que tomar dose alta porque era muita dor. O rim dela dava algum problema, tinha que tomar um para o rim”, lembra o filho.
“Ficava um puxando o outro e, no final, o próprio remédio, o efeito era pior do que a doença. Caia cabelo dela, ela perdeu dentes porque a medicação era muito forte. Hoje ela não toma mais nada”, completa.
Renato e Marina estão autorizados a plantar no máximo oito plantas de maconha em casa, até que ela consiga o custeio estatal para obtenção de medicamentos. Após a decisão, eles conseguiram reconstruir a relação familiar com os parentes que não aceitavam a situação. Hoje, exibem com satisfação as provas de que estão apenas fazendo o necessário para usufruir do direito à Saúde previsto pela constituição.